Migalhas de reflexão ou O que nós da filosofia devemos fazer

Como é de costume, li o Avelar. E topei com um post no qual ele embute um vídeo de Paulo Ghiraldelli Jr. falando, entre outras coisas, sobre o projeto bisonho do senador Eduardo Azeredo, do PSDB de MG. Para além da tosquice do cidadão que se auto-epiteta “o filósofo da cidade de São Paulo”, vamos a alguns trechos que me incomodaram os ouvidos:

1) O “filósofo” começa por dizer quão absurda é a censura para o que é culturalmente aceito. E daí saca os pobres Adorno e Horkheimer que estavam lá quietos no Olimpo para deduzir, da censura do que é culturalmente aceito, a sociedade da total administração. Não vou comentar que o processo de burocratização da vida e a redução àquilo que Marcuse denominou unidimensionalidade do homem retiram sua força de uma reflexão muito mais fina que enxerga em elementos muito mais sutis este processo, e não na simples e declarada censura.

O que simplesmente não consigo entender é o paradigma eleito pelo pensador da paulicéia: basta que seja socialmente aceito – e daqui ele exclui, por exemplo, a dimensão da legislação, fundamental em uma sociedade, já que opõem a privação pela lei àquilo que é aceito pela sociedade – que tal coisa não pode mais ser objeto de reflexão ética nem de juízos?

2) Mais adiante Ghiraldelli elabora mais uma oposição infundada: ao criminalizar a pedofilia incorre-se necessariamente na impossibilidade de tratamento do doente. Algumas coisas básicas: um homicida que mata compelido por uma doença mental pode ter seus atenuantes, mas o fato que ele provoca, o homicídio, não pode ser simplesmente negado. Ele gera, inclusive legalmente, um evento incontornável independente de sua motivação. A distinção entre culposo e doloso já é índice de tal distinção. O pedófilo pode ser movido por uma patologia, o que pode atenuar sua punição mas em nada altera a efetividade do crime. Logo, a punição e o tratamento não são de modo algum excludentes e o professor deveria ver com bons olhos, como filósofo, o quanto de abstração há em tal procedimento que consegue separar, ainda que formalmente, o crime e o que se passa com o criminoso.

3) Por duas ou mais vezes o professor fala no malefício que é refrear o progresso da tecnologia. Como se buscar atividades de pedófilos na rede fosse uma espécie de neo-ludismo. O argumento positivista ingênuo que arroga o progresso tecnológico como paradigma ético chega a ser acintoso. Como se questões éticas não estivessem necessariamente implicadas na atividade científica ou como se esta estivesse para além de quaisquer reflexões acerca da práxis humana. Isto é, aliás, problema da modernidade que só excita a dimensão instrumental da razão como se, por seus resultados, fosse autoridade última da humanidade. Ora, mas isso é justamente aquilo contra o que falam Adorno e Horkheimer…

4) Ghiraldelli identifica a postura da censura com o conservadorismo. Eu simplesmente não sei o que siginifica conservadorismo. Não sou de maneira alguma favorável ao que propõe o senador mineiro. Mas, se conservadorismo se refere à conservação de algo, talvez benéfico, não vejo onde o professor enxerga problema. De fato, em estreita relação com o positivismo do “argumento” anterior, conservadorismo está pari passu com retrocesso e inação. Então, não consigo encontrar melhor resposta do que uma citação de G. K. Chesterton:

We have remarked that one reason offered for being a progressive is that things naturally tend to grow better. But the only real reason for being a progressive is that things naturally tend to grow worse. The corruption in things is not only the best argument for being progressive; it is also the only argument against being conservative. The conservative theory would really be quite sweeping and unanswerable if it were not for this one fact. But all conservatism is based upon the idea that if you leave things alone you leave them as they are. But you do not. If you leave a thing alone you leave it to a torrent of change. If you leave a white post alone it will soon be a black post. If you particularly want it to be white you must be always painting it again; that is, you must be always having a revolution.

A inação e o retrocesso são próprios daqueles que pensam que o passar do tempo é progresso por si só e não o simples passar do tempo.

5) Por fim, ele conclama seus pares, filósofos, ao dever de lutar pela liberdade individual. Ok, eu não sou filósofo e talvez seja este o meu problema. Mas, novamente, não entendi. A tarefa da filosofia é conclamar à luta ou pensar nas condições de possibilidade ou validade de tal luta? Creio que a maior contribuição que a filosofia poderia dar ao assunto seria fazer justamente aquilo que o senador parece não ter feito, ou seja, refletir sobre todas as questões que sua canetada pode tangenciar. Não me parece horrenda a proposta de se pensar em punições a crimes graves, como os de pedofilia por exemplo, que encontram sim na internet ambiente fecundo e aparentemente impune. Isso nada tem a ver com cerceamento de liberdade de expressão e outras baboseiras que pululam no projeto. Concedo que os limites entre o que constitui crime e o que não constitui não são sempre claros, sobretudo em terras virtuais. Mas pensar nesses limites deve ser censurado?

P.S. Ahn.. e antes que eu me esqueça, a Ave-Maria de Gounod enquanto a moça geme foi o fino do bom-senso… Como disse Descartes, o bom-senso é a coisa do mundo melhor partillhada porque ninguém acha que deveria ter mais do que acha que tem… Ahn, mas a quem eu lembro isso?! O homem é “o filósofo”…

Leia também
Pecados Capitais da imprensa
Pode fazer o que quiser. É o governo quem diz

Assine o feed do Inter-Esse

Categorias do Technorati , , ,

2 Respostas to “Migalhas de reflexão ou O que nós da filosofia devemos fazer”

  1. Lembrete para mim mesmo « Inter-Esse Says:

    […] tambémMigalhas de reflexão ou O que nós da filosofia devemos fazerApenas para relembrar as diferençasCrimes e pecados et […]

  2. Isso me dá sono - parte 2 « Inter-Esse Says:

    […] Leia tambémIsso, por vezes, me dá sonoMigalhas de reflexão ou O que nós da filosofia devemos fazer […]

Deixe um comentário